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Os fins e os começos: Poetas nascidos e estreados na saudosa Nova República para o futuro ving'ouro
Marcos Siscar (nascido em 1964, estreou em 1999)
Los caprichos
toda vez que me agacho vejo o carrapicho
é simples não posso dizer mais do que isso
perto do chão não há muito a ser visto senão
trigo ruim um mundo inteiro encapsulado
cada vez que flexiono os joelhos e fecho
os olhos o que acho é apenas carrapicho
outros quando vão ao sol veem figuras
cores pastéis a sociedade em carne e osso
eu só encontro terra e carrapicho
e às vezes quando me levanto sinto
vertigem nos olhos como se da altura
de um homem enxergar fosse um capricho
*
Abstrações
Marcos Siscar
a transparência do ar o sangue escorrendo
as palavras fazendo todo sentido
diante de nós do lado de fora tudo é simples
absolutamente simples simples assim
e o que de mais simples que a paixão?
o incomensuravelmente simples
gostaria que tudo fosse mas se tudo fosse
algo haveria? a simplicidade é o que queremos
é tudo o que queremos – mas quem?
tudo o que há de mais improvável
entre nós e para nós
§
Gabriel Gorini (nascido em 1993)
setembro
é noite na lapa, e o mundo
não poderia parecer mais breve:
as poucas mortes que tenho no
bolso se movem como pequenos
deuses em guerra. meus dentes
ainda não estão como deveriam,
meu corpo ainda estremece vez
ou outra, mas seguimos.
aprendemos a dirigir, reprovamos
alguns testes. o mundo que nunca
houve: somos aquilo que somos
(e isto não é nada, meu bem). um
pouco acima do oceano, um pouco
abaixo, do que importa? há muito
que as águas da baía não espantam
os maus espíritos.
é preciso contar as histórias aos
filhos, mas não há filho algum.
então como recordar as lembranças,
enumerar as glórias, os fracassos,
chorar no ombro amigo a dor da perda:
amanhã ainda sobrevivemos, ainda
que encurvados, ainda que encolhidos.
é noite na lapa, e nomeio as
ruas em volta: a do rezende, a
gomes freire. os rostos passam
apressados e me pedem poemas
que sou incapaz de escrever, como
aqueles que, ajoelhados, suplicam
“faça o que quiser, senhor. só não se
esqueça de nós”
somos todos como pálidas frotas
de navios que se aproximam do
porto quando ninguém mais está
à espera. os últimos cachorros da
noite, as últimas demandas vencidas:
me disseram que houve
um tempo onde tudo
ainda era intacto
§
Dirceu Villa (nascido em 1975, estreou em 1998)
o inominável
nós fizemos um monstro com duas asas
de colunas dóricas, mas lhe demos mais,
demos-lhe também um uniforme negro
dos nossos pesadelos, capacete e luvas,
nós o pusemos hierático nos quadros e
creio que o dissecamos em nossos filmes.
nós o compusemos em pedaços de coisas
em tempos diversos, nós o consagramos
com barba comandante e doçura feminina,
ou por cruel feminino e macheza dócil.
nós o pusemos na escuridão dos cantos
esquecidos das nossas casas, sótão e porão,
entalamos sua cauda pontuda nas estantes,
nós lhe demos de comer comida gorda,
comida magra, nós o deixamos de jejum,
o revelamos em fotos do melhor contraste,
ou mal o discernimos fundido às sombras.
nós o amamos em sua invencível beleza
e o abominamos por sua inaceitável feiúra;
nós lhe demos um nome, mas subitamente
o medo de o dizermos nos paralisou e eis
que o conjuramos apenas e somente sem
o verbo, já perdido, entre a razão e o instinto.
*
transístores
Dirceu Villa
e estamos livres
inspiro o ar divino de sua boca
e o crime está consumado hoc crimen est ninguém vai fugir
como numa catástrofe onde todos
perecem
sob deus que aprecia nossa humana
persistência
saias sopradas saltos estalam
sapatos com presilha no tornozelo
um império de lindos tornozelos
seu momento amargo seus sentidos invadindo a bastilha enfim
14 juillet soprem as trombetas para a invasão;
não?
nos entretemos com uma conversa jogo-de-xadrez
enquanto você cruza e descruza as pernas trapaceando
para ver quem se perturba primeiro
madrugada
onde a trapaça deixou suas saias?
talvez na tv e nunca mais precisaremos
de velhos transístores: sempre indecisos
como sinapses sob propaganda de bebida onde flutuam
uns idiotas suados que sorriem
sorria também,
você está sendo informado do despejo
de suas belas ideias sujas
§
João Manoel Nonato (nascido em 1994)
meditação
agora que o furtivo trem ferrugem da noite
varou a forragem do éter
zumbindo seus penúltimos anúncios
e nas orelhas da manhã vibrou a porção
mais espessa
estou pronto para a vigília opaca
das mansardas
eu estou pronto para o mistério
pois bem
tenho um par de olhos turvados em excesso
e no entanto sei que vislumbro
tenho duas canhotas e sei que escrevo
e isso é o que sei
está nos autos da existência
de resto é tudo descontentamento
de resto é tudo descontentamento
e sempre um pressentir
que há nesse tronco esses braços e pernas
nesse rosto boca e narinas
e também os olhos turvos e as canhotas
cada qual em seu posto
tudo com tanto gosto pregado à terra
sempre com tanta pressa fincado em cruzes
como em toda pele há uma premência
e em todo corpo algo de cristo
mas nada disso é um endereço
nada disso é uma epígrafe
nada disso um espelho
nem nada uma ponte
ah mas quando aquele trem ocaso da noite
se lançar com tudo à rósea pedra da aurora
um pequeno deus me habitará
e serei de novo a ideia
esse cuidadoso decalque de acidentes celestes
erros de cálculo e pretensões de morrer
uma vida inteira cada dia
por falta de decisões
por preferência ou mero acaso
e o resto ainda
fora tudo mais que é descontentamento
ou músculo dessa engrenagem de mil destinos
esse resto então
será um eterno partir da espinha do espírito
será um labor de esculpir a face
para se desfazer à imagem do mármore
até que reste somente a voz
a voz erguida insustentada
por sobre a carne e a ganga das miragens
§
Lu Menezes (nascida em 1948. Sua estreia vem em 1979, mas adentra com força a cena na década de 90, com Abre-te, Rosebud em 1996)
Árvores de natal no escuro
Como lembranças dilapidadas
de um Natal clandestino sobre a Terra,
em constelações de janelas acesas, semáforos, letreiros
arde um dos teus tipos de luz noturna prediletos.
Outro, o lunar-estelar, ao contrário: te converte
em Partidário do Ceú Escuro, aspirante
ao mar sob um firmamento tão cravejado
que no esplendor dos reflexos circundantes
se confundissem o oceano líquido e o luminoso.
É fascínio fosfórico que te impulsionaria
a navegar entre galáxias, orientando-se
por certa visão atual do cosmo que M.Gleiser
descreve como “semelhante à de um campo
com árvores de Natal espalhadas na noite escura”.
Campo decerto de tal forma fulgurante e vasto...
que te deixaria exausto, obrigado a apagar as luzes e dormir.
Não sem antes admitir, reconhecer serem “árvores”
estruturas de matéria escura em que as estrelas se sustentam.
E, por isso mesmo, bendizer a indizível Árvore da Linguagem,
suas imagens e metáforas, seus incontáveis presentes fosforescentes.
*
Vida auditiva
Lu Menezes
Tornou-se “dessurda” após operação
que interrompeu sua já longa vida de surdez.
Os novos e sensíveis ouvidos foram logo
levados a passear em área rural
com plantações diversas.
Logo indagava furiosa
— O que pode haver
aqui para se ouvir?
E quebrando um galho seco
exemplificava ― Isso?
Será possível
que me tenham trazido
a este ermo para ouvir
macieiras crescendo?
― bradava
insistindo no teor
do temor alimentado
pela decepção.
Ir de um silêncio a outro
não foi o que sonhara.
Julgo contudo
que a essa americana
— branca ranzinza
ocidental demais ―
jamais ocorreria
reagir como um japonês
que em circunstâncias iguais
agradeceria habituado
ao aurático valor agregado
que o vazio propicia.
§
Rubens Akira Kuana (nasceu em 1993)
Bem-vindo
Sua frustração é óbvia.
A culpa é de quem compra
o DVD do V de Vingança
e converte para VHS.
A culpa é do Pai
solteiro com wi-fi.
Novas tecnologias
surgem para reproduzir
nossas vidas: na tela
do celular você
passa o possível
para o Possível. O que
você deseja? Suas
exceções lhe excedem
compulsivamente. Mas
o prazer permanece
rude e inatingível. In
suficiente. Como eu posso
lhe ajudar? Eu sou mero
aplicativo gratuito.
O um por cento
cúmplice e diacrônico
carrasco e financeiro
Nero e Suetônio.
Por favor, aguarde
enquanto atualizo
seu perfil. Não
há novas mensagens.
Não há notificações.
O mundo é o mesmo.
Você gostaria de velejar
praticar surf ou Odisseia?
Seus amigos pensam apenas
em você e marcam O
seu rosto. Lembra
quando você tinha um rosto?
Nós estávamos de férias.
Era verão e as tardes
tinham gosto de amora.
Seus jeans convinham sujos
sob o infinito. Me diga
se eu estou errado.
Eu lhe imploro,
corrija-me agora, me
diga se ainda restam
expectativas. #YOLO.
Eu sou um gigantesco
YOLO tatuado na
panturrilha da
sua instrutora
de Pilates. Sorria.
Comemore. Compartilhe.
§
Ricardo Aleixo (nascido em 1960, estreou em 1990)
Navio
Tua pequenina
(e não termina)
noite sem alma:
um quase inaudível
rumor de folhas
que caem, a
intervalos, na
distância entre
o quintal, a rua
e ninguém
que te espera
na beira do cais.
§
Sergio Maciel (nasceu em 1992)
sobre a pátina do mundo
era necessário esfregá-la
sob a violência da tarde
e,
de passagem,
tornar-te um território que se forma aos avanços daquilo que é perda indiscernível
como era necessário existir
à luz de uma ameaça
sob um limite que se furtasse
quase tronco
ao hematoma
ao tempo esburacado que como o diabo
decifra o cântaro
para não turvar o equilíbrio do bolor
da amargura que vai na boca daquilo que masca na carne a derrota
como era necessário
e mais que necessário era mistério
que de vida pouco ou não houvesse muito mesmo
só uns furtos
usuais
aqueles que
reunindo eternidade de tardes deformadas
desmoronam os estuques da morte
como era necessário ao que faríamos
e que hoje escondo no sangue da ferida
gerar uma síntese qualquer
cerco
que sarasse o desejo impiedoso de se evaporar de si
encontrar nesse estado contínuo
antes que a explicação total
areia fina
sobre os músculos
a natação coletiva
dos afogados
o oculto fio do vivido morrendo em sucessivo
§
Maria Bogado (nascida em 1992)
Entranha I
Não, nem poderia. Não, não é meu. Avilta-se. Você perdoaria minha
indelicadeza? A brutalidade, perdoaria? O esquecimento mesmo. Eu passei
pela terceira vez e pela segunda vez, a primeira. Desde a primeira, eu
reparei. Sabe? Uma entranha na avenida. Daquelas. Mas na primeira vez
foi como se eu não tivesse visto. Na segunda vez foi como se eu não
tivesse ouvido. Ou nem elas, um pouco como. Na terceira nem visto nem
ouvido, aí sim. Elas não. Na quarta não veio aquele ar. Na quinta não
fui. Na sexta toquei com a ponta de um dedo. Era ela, só ela, a
entranha. Fugir. As pilastras largas longas retas detém as curvas.
Foge-se. Detém o âmago. Detém-se. E quantas voltas mais e quantas, eu
não. Nem. Quantas? Voltas? A entranha se faz gemer. Faz-se. Escuto não.
Se vibra? Sim. Vibra. Porque eu (quem?) concordaria. Sim. Não, você não.
E, no entanto. E. Teve aquela coisa. A sua íris perpassada por lacunas
num azul tão claro. Eu não queria bem & mal, um julgamento de
eu-a-favor-bem & você-contra-mal ou vice-e-versa, poderia? É que o
contraste entre o azul muito claro e o branco-white-noise está mal
estabelecido e eu até que acho bom. Na verdade, esperei a hora exata do
dia pra te encontrar com o mínimo de contraste
debaixo-da-marquise-luz-artificial-acesa & céu-lá-fora-sol-caindo e
só assim o fundo não estoura e só assim eu quase perco de vista essa
micro-linha-divisória. De que? Porque eu nunca sei exatamente se a
lacuna é uma falta de azul, falta. Ou se uma sobra de branco, sobra? A
você não falta nada e isso é certo. Exceto um lugar onde possa dormir
até mais tarde porque isso de acordar às 3:30 e levantar às 4:00 nem
Deus. Isso deixa as pálpebras um tanto caídas e dificulta todo o meu
esforço de esclarecimento acerca do bem & mal, branco & azul,
falta & sobra, marquise & céu, calçada & asfalto,
os-carros-correndo & entranha. E se eu pudesse colar todas as sobras
uma a uma então me faltaria dinheiro. Help, Money! Mas é certo que o
acúmulo de sobras, das ínfimas às rasgadas me engordaria um tanto. É
certo também que a visibilidade das curvas sobre a pilastra varia de
acordo com o grau lacunar de cada íris. Nos braços, umas dobras
crescendo, umas dobras acentuadas e algumas dobrinhas. Justo a pele que
as recobria era omitida aos seus olhos branco azuis, cinzas. Ops, ops,
ops, vish, vish, espera lá. Você perdoaria mesmo nos seus estados
brutos? Tudo o que ela via (a pele) — e via com tanto detalhe que mal
reconhecia — era a superfície idêntica (ou quase) daquela outra camada
grudada sobre si. E. No terceiro braço ou entre. Mas um dedo, talvez um
dedo assim nem branco nem azul, pequenino deslize sobre os primeiros
suores de novembro. Vem, ela me disse na sétima volta. Me? Em?
§
Jussara Salazar (nascida em 1959, estreou em 1999)
DEUS EX-MACHINA [lisboa.02/17]
Meu corpo é um oceano esférico com peixes boreais|Dionísio brinda
Águas fluem desde myanmar para tecer um futuro
E levar os trens que passam rápido pela estação de arroios
Donde lê-se que toda ciência no futuro
Será exactamente verdade será exactamente inverdade
Um oceano esférico que aguarda|vampyroteuthis infernalis
Águas fluem antigas e medusas cristalinas leem o futuro
Enquanto os carros passam rápidos e cada clamor de seus motores
Enchem o ar de ondas escuras que sonham infâncias
Um oceano esférico onde as mulheres do oriente colhem arroz
Águas fontanas fios de seda tecidos sem a angústia mecânica
Enquanto navegam os barcos e elas cantam
Como um coro de meninas colhem flores aquáticas
Um oceano esférico deslocado deformado|metamorfose anamorfose
Águas estriadas por guerras para destecer um passado
Sob o olhar teatral de um deus impossível
Enquanto os tentáculos do tempo armam cenas humanas
Um oceano esférico e imaginário que abraça Beatriz e Dante
E revira na tela a imagem do barco para que Ulisses
Sempre retorne à imaginárias Ítacas
Para que a velha ama lave seus pés cansados da guerra
Um oceano esférico que abre cicatrizes em nosso útero
E eleva-se como o fez occam|malin génie cartesiano|sobre o mundo
Quando éramos a carne e o sangue
O corpo e o espírito|o desregramento dionisíaco
Um oceano esférico chamado humano
Oh se me fosse possível eu o faria ser mil anos antes
E retornaria ao mundo e às feridas | corpo anticorpo
Ao colo da terra agora coberta por esta estranha perfeição
Eu sentaria na estação de arroios
E sentiria a dor e a fome
E o estremecimento de trens humanamente lotados
E escutaria o coração de homens e mulheres à espera na beira do cais
Ergo sum qui sum [_deus ex-machina_] Exílio.
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